A mídia custa a dar voz ao debate científico sobre o aquecimento global
Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa.
Guerras e desastres causados por mudanças climáticas podem custar milhões de vidas em poucos anos.
A repercussão internacional da matéria publicada pela revista britânica The Observer, no domingo 22 de fevereiro de 2004, embute uma omissão, como notou o escritor e jornalista australiano Tom Engelhardt em seu blog TomDispatch. Mas a forma como isso passou despercebido da maioria dos leitores e comentadores revela um problema quase tão grave quanto o do próprio aquecimento global.
A matéria não forneceu informações falsas, nem sequer exageradas. Mas dava a entender ser um furo mundial sobre um assunto, até então, mantido em segredo. Não foi bem assim: em 9 de fevereiro, na revista norte-americana Fortune, as mesmas informações, com mais detalhes técnicos, haviam sido publicadas sob o título de Climate Collapse, The Pentagon’s Weather Nigthmare (Colapso Climático, o Pesadelo do Pentágono) e reproduzidas por mídias independentes.
A falta de atenção para essa primeira matéria – a ponto de poder ter sido relançada duas semanas depois como furo de ressonância mundial – é, por si mesma, uma história muito reveladora sobre os pontos cegos, cada vez mais vastos da imprensa, principalmente, mas não só a norte-americana.
A maior precisão científica do artigo de David Stipp na Fortune tornava-o até mais assustador que o da Observer para quem o soubesse ler. Que o mundo está a caminho de virar um inferno em razão das mudanças climáticas, há muito tempo deixou de ser novidade, mas se “há poucos anos tais mudanças pareciam ser sinais de possíveis problemas para nossos filhos e netos, hoje anunciam um cataclismo que pode não esperar, convenientemente, que já tenhamos passado à história”.
O estudo do Pentágono trabalhou com a possibilidade bem real de estarmos muito perto de um limiar crítico a partir do qual o clima pode virar repentinamente, em menos de uma década – “como uma canoa que se inclina pouco a pouco até emborcar de repente”, escreveu Stipp.
A hipótese de trabalho – que deve ser entendida como um cenário plausível, não como uma projeção – é que essa virada aconteceria entre 2010 e 2020. Seria resultado do derretimento, já visível, das geleiras do Ártico. A água doce assim libertada, juntamente com a chuva intensificada pelo aquecimento global, vai se misturar à Corrente do Golfo e reduzir sua salinidade e densidade. A corrente, hoje submarina, seria retida na superfície e perderia seu ímpeto.
Isso travaria a “correia transportadora” que conduz calor do Caribe para a Europa Ocidental e a torna muito mais habitável do que paragens igualmente setentrionais no Canadá, nos EUA e na Rússia (a latitude da Holanda e das Ilhas Britânicas é comparável à do Labrador canadense e da Kamchatka siberiana). Icebergs chegariam à costa de Portugal e a Europa congelaria. Em 2020, a temperatura média já teria caído 3 graus na maior parte do Hemisfério Norte.
Os peixes abandonariam as atuais zonas pesqueiras em busca de águas mais aprazíveis. Na terra ou no mar, espécies incapazes de migrar se extinguiriam (9% a 58% de todas as espécies animais hoje existentes, segundo diferentes hipóteses).
Ao mesmo tempo, a temperatura do resto do mundo subiria e os padrões de chuvas e secas seriam alterados em várias partes do planeta, provocando estiagens e inundações, difundindo para outras partes doenças, hoje restritas aos trópicos, e agravando os conflitos internacionais, principal razão do interesse do Pentágono no tema.
Suas especulações incluem a invasão da Rússia pelo Japão e países da Europa Oriental em busca de energia e recursos naturais, a reunificação das Coréias em uma nova potência capaz de somar a capacidade nuclear do Norte com a tecnológica do Sul e o rompimento pelos EUA do tratado que garante o fluxo do rio Colorado para o México, o que condenaria o país vizinho à desertificação, enquanto seus imigrantes famintos – juntamente com os do Caribe e da América do Sul – seriam impedidos de entrar na reforçada “fortaleza América (do Norte)”.
Stipp sugere que 25% da população masculina dos países pobres pode morrer nesses conflitos. Contou também que a 20th Century Fox lançará em meados do ano um filme de catástrofe mais ou menos baseado nesse roteiro, chamado The Day After Tomorrow, no qual Dennis Quaid interpreta um cientista que salva o mundo (ou o Hemisfério Norte?) dessa idade do gelo, paradoxalmente, causada pelo aquecimento global.
Mas na Fortune o teor explosivo do assunto parece ter passado despercebido – como se Londres e Haia ficassem em outro planeta. Era “só” um “pior cenário” plausível que o Pentágono gentilmente “concordara em partilhar” com essa revista de economia e negócios e com os estrategistas das transnacionais norte-americanas.
Neste caso, parece que o meio matou a mensagem. O resto da mídia global não tomou conhecimento até a Observer relançar o assunto e politizá-lo como se deve.
O silêncio não foi rompido nem na quarta-feira 18, quando 60 cientistas (incluindo 12 premiados com o Nobel, 11 com a National Medal of Science, três com o prestigiado Prêmio Crafoord, dois ex-assessores presidenciais de ciência e vários reitores de universidades e presidentes de institutos de pesquisa) endossaram um relatório da organização liberal União dos Cientistas Engajados (Union of Concerned Scientists – UCS) que acusa Bush de enganar o público ao distorcer a ciência de acordo com sua vontade política, assim como fez com os relatórios da CIA sobre “armas de destruição em massa” do Iraque.
Trata-se de uma denúncia ampla, que se refere também ao ocultamento pela Casa Branca de evidências levantadas pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) sobre poluição por mercúrio perto de termoelétricas e produção de bactérias resistentes a antibióticos pela criação de porcos, a troca de peritos científicos por representantes de empresas e igrejas em órgãos consultivos do governo federal, o apagamento e revisão de trechos de relatórios científicos oficiais, a proibição de divulgar que a ênfase na abstinência sexual por parte dos programas de “educação sexual” de Bush fez subir as estatísticas de gravidez adolescente e a ordem da Casa Branca ao Instituto Nacional do Câncer para este declarar, erradamente, que o aborto provoca câncer de mama.
Mas a questão mais vital, sem dúvida, era a supressão dos estudos sobre mudança climática e registros de temperatura do relatório anual da EPA divulgado em junho de 2003, também ordenada pela Casa Branca, que os substituiu por um estudo financiado pelo American Petroleum Institute.
Mesmo jornais que aplaudiram a UCS, como The New York Times, não citaram o estudo do Pentágono. Do outro lado da cerca, os mais imperialistas que o imperador – como o filósofo Olavo de Carvalho, no site Mídia Sem Máscara – tentaram desqualificar o posicionamento da organização sobre o aquecimento global com base em que “as referências a ela, acompanhadas dos respectivos links, são abundantes nos sites de organizações militantes comunistas, socialistas e pró-islâmicas”, sem se dar conta de que fontes tão insuspeitas quanto a Fortune e o Pentágono haviam divulgado cenários muito mais alarmantes.
Ainda mais assustador é que mesmo depois de publicada a denúncia no Reino Unido e amplamente comentada na mídia européia, asiática, árabe, israelense, canadense e brasileira, os principais órgãos da mídia norte-americana continuaram alheios ao assunto. O New York Times dedicou várias matérias ao carnaval brasileiro, mas não se referiu ao relatório do Pentágono. Nem o Washington Post.
Já o jornal conservador Washington Times – que na véspera havia ridicularizado o ex-candidato democrata Al Gore por tentar ressuscitar a discussão sobre o Protocolo de Kyoto e fazer dele um tema de campanha – ao menos acusou o golpe ao publicar um texto do filósofo Sterling Burnett, do instituto conservador National Center for Policy Analysis.
Burnett citou as divergências ainda numerosas entre climatologistas sobre os mecanismos exatos desencadeados pelo aquecimento global para classificar como “ficção científica” a tese da mudança climática, sem se perguntar por que o Pentágono se dá ao trabalho de analisar estratégias reais para enfrentar a tal “ficção”.
É como os artigos patrocinados pela indústria do fumo que, até o início dos anos 90, alegavam que a falta de consenso dos oncologistas em relação aos mecanismos que levam ao câncer desqualificava como científica a tese de que o cigarro o causava, ainda que tivesse sido exaustivamente demonstrada por estatísticas.
Mais tarde o discurso dessa indústria embarcou na onda do individualismo neoliberal: passou a defender a responsabilidade e a liberdade pessoal de “optar” pelo risco de contrair um câncer. Mas no caso do aquecimento global, não há como optar individualmente, mesmo em tese, por correr ou não o risco de causar uma catástrofe planetária. Aliás, de acordo com o cenário do Pentágono, os países mais pobres e menos responsáveis pelas emissões de gás carbônico serão os primeiros e mais duramente atingidos pela vingança cega da natureza.
Houve quem, ao constatar a indiferença da sociedade civil ante o aquecimento global e seus efeitos mundialmente catastróficos a longo prazo, lembrasse de certa experiência científica cruel, mas verdadeira. Uma rã colocada em água quente salta imediatamente para fora, mas colocada em uma panela de água fria sobre um fogo que eleve sua temperatura pouco a pouco, a mesma rã nada tranqüilamente até morrer cozida.
Da mesma forma, a julgar pelas manchetes da imprensa norte-americana, sempre há mais gente disposta a tomar ou exigir providências em relação aos riscos de ser vitimado por um criminoso desconhecido, por um terrorista islâmico, pela queda de um avião, por abelhas africanas e até pelo choque de um asteróide com a Terra do que a fazer o mesmo contra as conseqüências muito mais vastas e certas, mas graduais, de seu próprio consumo irracional e supérfluo de petróleo.
Agora nos é dito, porém, que essas conseqüências talvez nem sejam tão graduais. Talvez se tornem drásticas, óbvias e praticamente irreversíveis já nesta década, ou na próxima. Mesmo assim, a mesma imprensa que dá capas e manchetes a debates sobre os riscos das gorduras hidrogenadas e dos implantes de silicone continua a tratar essa questão como um debate acadêmico complicado, abstrato e distante.
Talvez seja mais apropriado atribuir essa relutância a uma propensão a exagerar problemas que, aparentemente podem ser atribuídos a um “outro” a ser punido ou uma natureza a ser domesticada, para melhor ocultar aqueles causados pelo modo de viver, produzir e consumir da mesma sociedade que a própria mídia não se cansa de exaltar e promover.
Como noticiar – ou simplesmente pensar de dentro do american way of life – que as emanações dos jipes esportivos que encantam as famílias norte-americanas podem ser muito mais úteis aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse que todos os terroristas da Al-Qaeda e do Hamas, somados? Que a desregulamentação e o livre mercado, em vez de levar ao melhor dos mundos possíveis, podem nos conduzir ao pior desastre da história?
Fez fortuna, em outros tempos, o lema “melhor morto do que vermelho (better dead than red)”. Agora, parece que mais vale morrer sonhando o american dream do que abrir mão do exagerado padrão de consumo dos EUA: melhor morto do que menos rico.
Parece mais fácil ser racional na pobre República das Maldivas, tão pequena que seus cidadãos brincam que só é preciso encher os tanques de seus carros uma vez por ano. É formada por pequenos atóis de coral do Oceano Índico (aquele que abriga a capital tem 500 hectares), com pouco mais de um metro de altura. As mudanças climáticas já começaram a destruí-los e mesmo uma pequena elevação do nível do mar os inundaria rapidamente. Seu governo tem construído diques e quebra-mares para retardar a destruição dos atóis e, em 1997, começou a construir uma ilha artificial chamada Hulhumale, um pouco mais alta que seu território natural, para abrigar seu povo. É a primeira Arca de Noé do século XXI.
Seres humanos não são rãs. Distinguem-se de outros animais, entre outras coisas, pela sua capacidade superior de interpretar indícios, relacionar causas e efeitos e antecipar os resultados de suas ações. Mas também por sua capacidade de mentir até para si mesmos – principalmente quando se trata de políticos e empresários (inclusive de mídia) para os quais o encobrimento da verdade favorece seus interesses mais óbvios e imediatos.
Isso não diz respeito apenas ao atual governo dos EUA, apesar de seu engajamento a favor dos interesses do setor petrolífero ter obviamente agravado a questão: já no tempo de Clinton os democratas hesitavam em defender abertamente o Protocolo de Kyoto e sua relutância aumentou ainda mais depois dos efusivos cumprimentos da National Association of Manufacturers (a CNI dos EUA) e da Câmara do Comércio a Bush por ter defendido o interesse nacional contra o tratado que limitaria o consumo de combustíveis dos países industrializados.
Restou nos EUA, porém, uma instância encarregada de pensar o impensável – as Forças Armadas. Como parece improvável que a Casa Branca decida privatizá-las, seus cientistas podem acabar como os únicos autorizados a discutir ecologia sem serem tachados de antiamericanos.
Mas não nos iludamos: ao tratar do assunto, o Pentágono lembra um certo figurante freqüentemente citado por Luis Fernando Verissimo. Sua participação na peça seria entrar em cena durante uma bacanal, jogar as mãos para o alto, escandalizado, e dizer: “Mas isto é Bizâncio!” O ator entrou em cena na hora certa e disse a fala corretamente. Só que fez isso esfregando as mãos.
Da mesma forma, é difícil não imaginar os generais a esfregar as mãos ao listar os novos riscos para a segurança nacional e prever a transformação dos EUA em vasta fortaleza protegida por um arsenal ampliado e modernizado que proteja seus recursos de serem consumidos por imigrantes famintos empilhados em precárias jangadas ou pilhados por nações desesperadas, armadas com bombas atômicas.
A conclusão do relatório do Pentágono, vale notar, é positiva: “Os EUA sobreviverão sem perdas catastróficas”, ao contrário da maioria das demais nações do mundo. Se lhes importa mais estar em primeiro lugar do que viver em um mundo razoavelmente habitável, serão os demais que terão de jogar as mãos para o alto, se escandalizar e gritar “Mas isto é Bizâncio!” Sem esfregar as mãos.