O Grande Inquisidor – Fiodor Dostoievski

Extraído do romance “Os Irmãos Karamázov” (publicado em 1879-1880), do escritor russo Fiodor Dostoievski.

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O capítulo a seguir reproduz o diálogo entre dois irmãos. Dostoievski foi inspirado ao retratar o incômodo causado pela presença de Cristo aos seus ditos servos e representantes. A cena do conto se passa na Idade Média, mas expressa uma realidade que atravessa séculos. O autor também faz uma análise psicológica do ser humano, que não está preparado para a liberdade consciencial. Prefere o jugo da religião a tomar a responsabilidade sobre sua própria vida. Poucos fazem a exceção a esta regra.

– É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A ação passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante(1). Em França, os «clercs de la basoche»(2) e os monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espetáculos ingênuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu «bom Juízo». No nosso país, em Moscou, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste gênero, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam-se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles «de que até Deus se esquece» – expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: «Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?» -, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: «Senhor, a Tua sentença é justa!». Pois bem: o meu poema teria sido deste gênero, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: «Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus», segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: «Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores».

É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. «Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas». A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n’O e amam-n’O e têm esperança n’Ele como outrora… Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: «Senhor, digna-Te aparecer-nos», já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev(3), que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que «curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda».

Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A ação passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e «os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé». Oh! Não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, «como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente». Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei(4). Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: «Senhor, cura-me e ver-Te-ei»; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.

– Vai ressuscitar a tua filha – gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.

O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: «Se és Tu, ressuscita-me a filha! – e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, alto, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança – e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n’O e levam-n’O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n’O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:

– És Tu, és Tu? – E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: – Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez – diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.

– Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã – objetou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. – É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?

– Admite essa última hipótese – respondeu lvan, rindo – se o realismo moderno te tornou a esse ponto refratário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua idéia lhe tenha perturbado o espírito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.

– E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?

– Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: «Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos.» Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos. «Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?» – pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: «Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé». Não disseste Tu muitas vezes: «Quero tornar-vos livres»? Pois bem: lá os viste, aos homens «livres» – acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro – prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completamos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?

– Não compreendo outra vez – interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma troça?

– De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objetivo de tornar os homens felizes. «Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?

– Que significa isso: «Não Te faltaram avisos e conselhos»?

– Mas é o ponto capital do discurso do velho.

«O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada – continua ele – falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te «tentou». É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as «tentações» que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o fato de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: «Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.

«Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.

«Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão-de seguir gritando: «Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?» Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. «Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!» Eis o que se o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão-de clamar: «Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram.» Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: «Fazei de nós escravos, mas alimentai-nos.» Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si! Também se hão-de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão-de seguir por causa deste pão, mas que há-de ser dos milhões e dos bilhões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão-de tornar-se finalmente dóceis. Hão-de admirar-nos e hão-de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo-nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade – indivíduos e coletividade – : «diante de quem se inclinar?» Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: «Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!» E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma idéia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais!

Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranqüilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão-de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: «Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai.» Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n’Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: «Desce da cruz e acreditaremos em Ti.» Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma idéia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-te: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São cobardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazes de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão-de chamá-Lo com desespero e esta blasfêmia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfêmia e acaba sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei-de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exatamente Oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declamamo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objetivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.

No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão-de passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão-de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta virá ter conosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra «Mistério!» Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores:

«Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!» Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-á mais prazer do que o próprio pão. Hão-de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão-de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-á tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças.

Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão-de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão-de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão-de escutar-nos com alegria. Hão-de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão-de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns cem mil, os dirigentes, exceto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão-de contar-se por bilhões e haverá cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles. Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvamos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo «impuro». Então eu me levantarei e mostrarei os bilhões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: «Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de «completar o número». Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás-de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Disse.»

Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um sorriso nos lábios.

Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.

– Mas… é absurdo! – exclamou, corando. – O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano… Eis o ideal que eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime… a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres… uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz… eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.

– Espera, espera – disse-lhe rindo lvan. – Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?

– Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas vistas… mas não era precisamente a mesma coisa.

– Aí está uma informação preciosa, apesar do teu «não era precisamente a mesma coisa». Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta- -se às pessoas inteligentes. É impossível?

– Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? – gritou Aliocha, quase zangado. – Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos… O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.

– Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, «esses seres de aborto, criados por troça». Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exército «ávido do poder apenas para os vis bens», não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira idéia diretriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a idéia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os maçons; vêem neles concorrentes, vêem neles uma dispersão da idéia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o ar de um autor que não suporta a tua crítica.

– Talvez tu sejas também maçon – disse de súbito Aliocha. – Não acreditas em Deus – continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troça. – Como acaba o teu poema? – prosseguiu ele, baixando os olhos. – Não há mais nada?

– Há. O fim que eu tinha pensado era este: «O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: «Vai e nunca mais voltes… nunca mais.» E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.

– E o velho?

– O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.

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